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"Expressão 'erro médico' é banida dos processos judiciais: Justiça impõe mudança após pedido do CBC ao CNJ"

24 de Fevereiro de 2024



 

O termo "erro médico" foi oficialmente removido de todos os processos legais após uma colaboração entre o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) e a Associação Médica Brasileira (AMB), em resposta a questionamentos do setor.


A expressão, considerada pré-julgamento, será substituída por "serviços em saúde", uma designação mais neutra e imparcial. A mudança foi desencadeada após uma análise criteriosa do CBC e da área jurídica, que apresentaram um pedido de mudança da nomenclatura ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A antiga rotulagem, associada a pré-julgamentos, prejudicava a reputação dos profissionais de saúde. O CNJ deliberou pela substituição da nomenclatura contestada, estabelecendo o uso da expressão "serviços em saúde"

Entrevista com o Advogado Dr. Eduardo Dantas

COOMEB: Como essa decisão impacta os profissionais de saúde em geral e os médicos em particular?

DR. EDUARDO DANTAS: Do ponto de vista do que será analisado no processo – eventual dano causado, culpa do profissional e o que realmente ocorreu durante a relação com o paciente – não há mudanças na prática. Entretanto, o impacto sobre a reputação é perceptível. Claro que não há vergonha em ser processado (e não há culpa definitiva até o trânsito em julgado de uma ação), mas responder por “danos decorrentes da prestação de serviços de saúde” é muito mais palatável do que se ver respondendo por “erro médico”. Aliás, a expressão “erro médico” se encontra tão banalizada (em razão da excessiva judicialização) que é usada até mesmo de forma equivocada. Basta fazer uma simples busca na internet usando como parâmetro “erro médico de dentista” ou “erro médico de enfermeiro”, que se chegará a diversas matérias jornalísticas confundindo estes aspectos.

COOMEB: Há precedentes legais que embasam essa mudança?

DR. EDUARDO DANTAS: Não se trata aqui de precedentes legais, mas da correção de um equívoco histórico. A utilização da nomenclatura “erro médico” para designar uma classe de ações que buscam indenizações as mais diversas – danos morais, materiais, estéticos, existenciais, lucros cessantes etc. – já revelava, de partida, um manifesto pré-julgamento sobre a narrativa apresentada na petição inicial (muitas vezes mal escrita, de difícil compreensão lógica e essencialmente desvinculada da realidade). Não resolve o problema estrutural, mas é um bom começo para devolver racionalidade à discussão.

COOMEB:Quais são as implicações práticas dessa decisão para os processos judiciais em andamento?

DR. EDUARDO DANTAS:A mudança é essencialmente de caráter psicológico, e isso conta bastante sobre a forma como processos são vistos. É preciso levar em consideração que ainda existem poucos operadores do direito – promotores, juízes, advogados – com expertise em Direito Médico, com conhecimento adequado sobre o cotidiano da prática médica, o que leva a se fazer uma abordagem menos técnica e puramente “jurídica”. Tratar de “erro médico”, portanto, se mostra um pré-julgamento inaceitável, enquanto discutir “falhas na prestação de serviços de saúde” é mais honesto, porque se abre uma maior oportunidade de pontuar a análise do caso concreto sob a perspectiva da medicina, ou seja, reconhecendo que não há casos idênticos, que cada paciente tem um comportamento e uma fisiologia únicos, que há diversos fatores – internos e externos à relação, inclusive aqueles relacionados exclusivamente ao paciente – que podem afetar o resultado, e que precisam ser levados em conta, ponderados, antes de se elaborar uma sentença cujos efeitos podem ser muito mais danosos que os meramente financeiros, mas sim afetando a própria reputação do profissional.

COOMEB: Como a decisão do CNJ afeta a forma como os casos de "erro médico" serão tratados futuramente?

DR. EDUARDO DANTAS: É um convite à reflexão. Uma demonstração de que o Poder Judiciário necessita de manter sua imparcialidade, seu distanciamento, analisando efetivamente provas trazidas ao processo. É um amadurecimento da discussão, que ainda precisa avançar muito, mas a mudança demonstra a existência de espaço para atingir essa maturidade processual.

COOMEB: Essa decisão pode influenciar a maneira como a sociedade em geral percebe os casos de "erro médico"?

DR. EDUARDO DANTAS: A decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), encampando o pedido realizado pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões, após discussões travadas em julho passado, durante o 35º Congresso Brasileiro de Cirurgia, se mostra oportuna e adequada, em um momento em que vemos crescer o índice de sinistralidade de processos movidos contra médicos e demais profissionais de saúde, sejam eles judiciais ou ético-administrativos. Há no país uma preocupante explosão das estatísticas (e o espaço aqui seria curto para explorar todas as razões de forma aprofundada), mas a decisão transmite uma mensagem implícita, no sentido de buscar devolver racionalidade ao debate, evitando o vitimismo exagerado, e reconhecendo que há empenho, profissionalismo, sacrifício, esforço e dedicação por parte dos médicos. Não há, em são consciência, profissional que queira prejudicar seu paciente, e os infortúnios são a exceção e não a regra. Casos grosseiros chamam a atenção da mídia justamente por serem fora da curva, raros. Observem que não há no noticiário informações de que todos os pousos e decolagens de aeronaves em um determinado dia transcorreram sem incidentes, mas quando um pequeno avião bimotor cai, com dois ocupantes, na selva boliviana, isso vira notícia. Ocorre o mesmo com a prática médica, e a sociedade precisa parar de demonizar a esmagadora maioria de profissionais sérios e comprometidos.

COOMEB: Há alguma preocupação com a possibilidade de abuso ou má interpretação dessa nova nomenclatura?

DR. EDUARDO DANTAS: Vejo exatamente pela perspectiva oposta. A nomenclatura nova retira dos holofotes os médicos, ao reconhecer que “serviços de saúde” com eventos adversos, muitas vezes, sequer implicam a participação médica, como casos em que se trata de falha hospitalar, ou de outros membros da equipe multidisciplinar.

COOMEB: Como os advogados devem abordar casos de "serviços em saúde" de agora em diante?

DR. EDUARDO DANTAS: Como sempre deveria ocorrer, ou seja, com responsabilidade e compromisso com a verdade. É comum ver processos levados ao judiciário com queixas absolutamente subjetivas e desprovidas de fundamentação, seja ela técnica ou jurídica. O Brasil tem hoje mais faculdades de Direito que todo o restante dos países do planeta somados. A judicialização contra profissionais de saúde tem atingido níveis que extrapolam a razoabilidade, e muito disso se dá pela falta de critérios – e de preparo – na análise de viabilidade de um processo, que não pode ser visto como aventura ou loteria, à espera de um acordo ou uma sentença equivocada. O que o CNJ faz ao alterar a nomenclatura desta classe específica de processos, mesmo que indireta e não intencionalmente, é promover uma reflexão e um debate, um chamamento à responsabilidade, que já está atrasado em quase duas décadas. E isso envolve inclusive uma maior participação dos profissionais de saúde, que precisam se conscientizar que não há milagres quanto ao resultado de um processo. É necessário ter registros precisos, documentação adequada, uma boa assessoria preventiva, compreendendo que somente assim se poderá minimizar os riscos jurídicos da profissão.

A COOMEB possui parceria com o escritório do dr Eduardo Dantas, que presta assessoria jurídica em qualquer área do Direito Médico, judicial ou extrajudicial aos seus cooperados.

 

 

Eduardo Dantas - Advogado, inscrito nas Ordens do Brasil e de Portugal; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1995); Especialista em Direito de Consumo pela Universidad de Castilla-La Mancha (2001); Mestre em Direito Médico pela University of Glasgow (2007); Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra; Ex Vice-Presidente e membro do Board of Governors da World Association for Medical Law; Procurador Jurídico do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco; Autor dos livros Direito Médico (Editora GZ, 2009), Comentários ao Código de Ética Médica (Editora GZ, 2010), DroitMédical au Brésil (Editora GZ, 2013); Aspectos Jurídicos da Reprodução Humana Assistida (Editora GZ, 2018); e Contemporary Issues in Medical Law (Editora GZ, 2018); Coordenador dos livros Tendências do Direito Médico (Editora GZ, 2021), Diálogos entre Direito e Medicina (Editora GZ, 2022 e 2023) e Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados sob a perspectiva do Direito Médico e da Saúde (Editora Foco, 2023); Autor de diversos artigos publicados no Brasil, Portugal, Israel, EUA, Polônia, República Checa e França; Ex-Membro da Comissão Especial de Direito Médico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (Gestões 2013/2015 e 2016/2018); Ex-Presidente da Comissão de Direito e Saúde da OAB/PE; Fundador e Ex-Presidente da Comissa?o de Direito Médico da OAB/AL; Membro fundador e Diretor de Relações Públicas do Instituto Miguel Kfouri Neto; Vice-Presidente da Asociación Latinoamericana de Derecho Médico; Membro fundador e ex-presidente da Comissão Diretiva da ALDIS – Associação Lusófona de Direito da Saúde; Membro do IBERC – Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil; Vice-Presidente da Comissão Nacional de Direito Médico da Associação Brasileira de Advogados - ABA; Membro do Conselho Editorial da Medicine & Law Journal, revista da World Association for Medical Law.
Contato: eduardodantas@eduardodantas.adv.br


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